PROIBIDO BUZINAR
Paulo
da Matha-Machado Jr.
U
T I
Fui acordado por uma voz de mulher. Era um som bem desagradável e
atemorizador. Apesar do tom baixo, quase inaudível, dava para perceber a ameaça contida no jeito de cuspir as
palavras. A enfermeira raspou-se.
Ninguém nunca soube explicar esse medo, mas é atávico:
qualquer um, desde a primitiva horda, sabe do que eu estou falando. Tanto
sabemos que a lembrança acudiu-me com toda a nitidez, embora tão arcaica. Quase
uma epifania. E causou-me extremo desconforto, que somado aos da minha atual
condição, todo enredado de fios e preso
naquele leito de hospital, ficou ainda maior. Para disfarçar tentei
assobiar, enquanto procurava a tal mulher. Mas não conseguia soprar direito,
com aquele tubo naso não-sei-o-quê, logo
acima do lábio superior. De qualquer forma, o esforço deve ter alterado
algum mostrador no posto da enfermagem, pois sem tirte nem
guarte lá veio uma delas. Sobrolho franzido, nem precisou falar, essa uma.
A
última coisa que me lembro foi aquele mal-estar enorme. E agora, neste depois, o
olhar. O olhar consolador e perfeitamente insultuoso do estranho na cama ao
lado. Companheiro de cela na prisão, a soturna UTI de um soturno hospital, onde eu aguardava ansioso
que minha neta e seu poderoso amante viessem me resgatar. Enquanto isso não
acontecia, mostrei claramente ao vizinho de cela o quão desagradável era aquele
seu olharzinho desconsolado/consolador. Ao mesmo tempo tentava espantar aqueles
pássaros. Voejavam agressivos à volta do leito. Eram dezenas, cores vibrantes,
penachos, lindos. Os bicos aduncos e ávidos no entanto, mostravam a maldade. Se
eu parasse de bracejar seria bicado, cada um levaria um naco de carne, da minha
carne, do meu corpo. Um horror. Levei outra reprimenda da atendente, não se
agite tanto, algum reloginho de lá havia me entregado. eu estava muito inquieto
no sono, não era bom: devia ficar mais
tranqüilo, relaxado. Nem me ocorreu de perguntar qual a maneira de conseguir
isso, o controle do próprio sono.
No
mesmo instante dessa lôbrega aparição, os pássaros escapuliram-se não sei para
onde, assim como sequer imagino de qual lugar saiu essa história de neta com
amante, nem filhos tenho. Ansiedade provavelmente. Ou alguma espécie de idiossincrasia, tendo em vista minha condição
de enfermo. Delírios disse papai. Delírios. Sobrolho.
E a
mulher que me acordou com seu discurso raivoso? Acho que foi da outra vez,
ainda lá na Ilha. Aquela confusão quando eu fui atropelado e o motorista bêbado
ainda ficou me xingando. Havia uma vizinha, conhecida de vista. Ela sabia quem
eu era, conhecia meus pais. "Madame" como a chamávamos, ficou uma
fúria com o sujeito, passou-lhe uma carraspana naquele seu sotaque francês, os
rr guturais as sílabas misturadas de cambulhada, o bêbado raspou-se.
Não
tenho a mínima idéia de como "Madame" veio parar no Século 21, ainda
jovem - na época eu a achava velhíssima, quarenta anos? - em um hospital desta
cidade. De qualquer maneira aguardo ansioso a sua volta. Espero que ela me
defenda de um próximo ataque dos pássaros ou da enfermeira de bico adunco. Não
seria de todo mau providenciar também uma proteção que isolasse minha cama do
leito vizinho e seu ocupante hipócrita deslavado.
Aí,
o vulto em pé ao lado da cama continuou me olhando. Cada vez mais compassivo,
cada vez mais parecido com alguém que eu sempre me amaldiçoei por nunca ter
tido a coragem amar. Sem nunca querer ter sabido muito mais do que o
corriqueiro. O superficial. A medida que fui crescendo, a esquivança também
ficou maior, constrangido e cerimonioso
distanciamento até que. Morreu? Enterre-se! Não foi falta de compaixão, meu
pai, foi angústia.
C
O M A
Ossos
do ofício. Paciência. Comedimento. Moderação. Tão modesto nos paços de Luculo/
como no tonel do grego/ nem o transtorna a aragem da ventura/ nem a desgraça o
abate. Aguardar com serenidade, já já viriam desfazer aquele terrível engano.
Nunca tive problema cardíaco, doutor, não precisa mexer aí não, nem colocar
essa molinha. É; não doeu, bem que o senhor falou. Vai ficar para sempre ou o
organismo absorve? Ateroma, é? E esse tal “stent” aí, dura mais quanto?
Canto? Memória? Consciência? Metáforas? Lembrei-me
do carteiro, querendo ser poeta e casar com a Linda da Aldeia. O livro, como
sempre, era bem melhor, mesmo com toda a publicidade sobre o filme. Diamantina foi uma miserável feitoria do rei
português e três ou quatro sevandijas. Um explorava as águas à procura do
brilhante, o outro contava, media e pesava os achamentos, um terceiro
ficalizava os dois, que por sua vez espionavam este e todos se odiavam. O resto
do povo roía couro com raiz de capim. Um dia acabou e quem pode foi embora,
quem ficou achou foi bom, o capim tinha
ao menos gosto de liberdade, já não sabia a amargo. O livro. Eu li o
livro. Tinha mar em Diamantina? Minha mãe sempre achou que sim, mas ficava
escondido e por isso a gente não via. Prestando bem atenção, dava para ouvir as
ondas. Eu me lembro que para chegar na praia o carteiro precisava guardar a
bicicleta e dar uma imensa volta. O poeta talvez voasse, pois lá o aguardava, gordo
como um leão do mar. Descalço, com as pernas da calça enroladas em duas ou três
dobras, todo pimpão refestelado na areia. Olhando as ondas. Eva viu a uva.
Ivo... Meu Deus! Quanta falta de assunto! Só um instantinho, eu preciso acabar
de pensar isso aqui sobre o que estou sonhando, depois a gente vê isso de
laboratório, se não a gente pode voltar logo a dormir logo depois mas não
adianta mais: o sonho já sonhado foi embora e nunca mais. Tirar sangue. Ai!
Essa agulha tão fundamente no pulso, à procura de uma artéria, isso dói! Sem
contar que da última vez fiquei mais de mês com o punho roxinho roxinho, ia antebraço
acima até quase o cotovelo. Aquela mancha azulada, sei lá, muito esquisito. A
soma dos óxidos é igual ao quadrado da distância do Oiapoque ao Chuí, do lado
de lá muda para Chuy, gasometria dói, caramba! Quando cai, acabou. Finitus est.
Calado, ar circunspecto, em pé junto ao meu leito com
esse velho chapéu de feltro entre as mãos você está muito sinistro. Parece um
tatupoiú conhece? O peba? papa-defunto,
sô! É! Com esse terno escuro aí então... Sempre vi mamãe implicar muito com
você e então desde pequeno eu achei que também podia. Hoje eu penso que nunca
fui muito capaz de encarar o tremendo desafio e a extrema responsabilidade de
ser primogênito, nos termos e condições envolvidas. Mas fui, muito a
contragosto, até descobrir aquele irmão mais filho que eu, pois mais velho. Não
chegou a termo, é verdade, mas durante um tempo ocupou corações & mentes
dos velhos. Quando eu soube da existência desse evento, sabem o que fiz? Transferi prazerosamente para ele o
título e todas as prerrogativas do morgadio. Mas não dei publicidade a tal ato,
talvez pela extrema racionalidade do mesmo.
Por isso menti antes, mas sou pai, sim. Neta com amante ainda não tive
esse prazer, principalmente se ele fosse um cara assim que desse as cartas em
alguma safadeza dessas bem lucrativas. Posso tirar as castanhas do fogo
usando a mão do gato e ainda taxá-lo de
ladrão... a vampira do laboratório (feiosa ainda por cima) mexe e remexe com a imensa agulha.
Dona Tina passou
rapidamente por aqui, com seu cesto de embira trançada na cabeça. Dentro, como
sempre, alface, couve, almeirão, repolho, beterraba, as cores me atraíam,
acabei quase vegetariano, talvez isso de agora, esse sangue e essas dores, tudo
tivesse sido evitado se eu levasse até o fim essa tendência infantil; no lugar,
cachaça, muito fumo de todas as espécies e origens, andei cheirando um pouco
também, fiz muita arte, hélas!
Apesar disso
conversamos bastante. Ela me contou que nas horas vagas, enquanto esperava
crescerem as hortaliças e o marido voltar do armazém com a cachaça, lia. Lia
desesperadamente. Soluçava e lia, procurava entender achava que devia ter algum
sentido, uma lógica. Lembrei do cardume de um peixe chamado ubarana que um dia
veio de encontro aos nossos anzóis. Era eu mais um tio que me ensinara a pescar,
nada demais, ficávamos em cima de uma grande pedra no fim da praia: cocorocas,
um que outro baiacu sem-vergonha que roubava iscas sem parar com aquela
boquinha mole de lábios grossos e dentes serrilhados, às vezes cortava a linha,
o danado.
Então, quase tão
imponderável como sermos atingidos por um raio, vieram as ubaranas. Num assanho
que precisava de ver. O mar fervia, e logo meu tio apanhou a primeira, e aí uma
após outra fisgava o anzol, era só puxar. Cada um de nós pegou mais de uma
dezena, de repente foram embora, voltamos para casa com aquela fieira de
peixes, meu tio ria, mamãe nem acreditava. Mesmo assim fingiu zanga e lá fomos,
eu e ele, para a beira do tanque, faca bem afiada, descamar e eviscerar os
peixes. A lógica disso? Dona Tina lia e se desesperava, o marido bebia dormia e
ela e eu então, custei a aprender,
sempre fui tapado, voltava feliz à pé para casa debaixo da via láctea, feliz ia
dormir como um cãozinho sem memória.
AFTER HOURS
Se
Ivo viu alguma cousa eu não sei, mas o
vizinho de leito deixou de fazer sentido e minha neta e seu amante
ministro imaginário pararam de fazer parte das minhas experanças e então nada
mais importava. Eu estava em um
cubículo, miríades de fios, uns mais grossos outros nem tantos, cada um de uma
cor, saíam do meu corpo em direção a uma
caixa onde se conectavam. Ela emitia um zumbido constante e muito satisfeita
consigo mesma, parecia que através dos tubos e fios ela ia se alimentando do
meu organismo. Era muito desagradável, não sei porque eu ficava imaginando um
tigre sugando a presa.
Além
do zumbido do tigre havia um outro barulho, esse um constante ressoar de uma
pancada surda, como um batimento cardíaco. Sessenta e tantos, setenta e alguma
coisa, havia uma tela fosforecente na caixa. Um ícone pulsava no mesmo
andamento, algo assim como um alegro maestoso. Era só eu me mexer
e os números pulavam para oitenta e tantos ou mais. Tinha certeza, entretanto,
que aquilo era só encenação. Havia morrido, caput. Alea
jacta, Cloto, Láquesis e por fim Átropos
No entanto, dentro da
modéstia que sempre norteou meus atos,
enquanto permanecia ainda ligado por tênues fios à minha existência
terrena e não me desatava por completo do dito invólucro carnal, aguentei firme.
Ao contrário do que a maioria diz que
faz, não permiti que minha alminha quase desencarnada subisse
ao teto, mas sim que ficasse escondida e caladinha no chão, bem embaixo
do leito hospitalar. Afinal nada mais kitsch que morrer e ficar por ali como um
paspalho olhando a azáfama que lá embaixo ocorria. Teatro tartufo, arlequinada,
aquele vaudeville todo. Pior que isso só
mesmo os programas domingueiros da TV, toda aquela estridência, pobreza de
espírito e cafonice profunda e incurável, puro Mondo Cane. Já a morte, a
corriqueira morte, a cessação da existência, essa uma torna o biltre
irremediável num cadáver pomposo e digno
de todas as homenagens. Assim falaria o velho Nélson, e ele tem razão. Já houve época em que a pompa era maior
ainda, lembro de féretros que paravam o trânsito da cidade, aquela lombriga
enorme que nunca mais acabava de passar, a completa frota automobilística do
município. Todo mundo tirava o chapéu e se punha em posição respeitosa, não
importando o quão filho-da-puta tivesse sido o de cujus, cáspite! Falar
latim e usar interjeições arcaicas é o cabível nessas horas, Tia Mariana, tão bonitinha em seu caixão,
coberta de margaridas amarelas, Tia Mariana lá se foi para a cova, ela com suas
margaridinhas, tão contente que me deu um baita sorriso quando iam fechando o
caixão, só faltou exclamar, rindo, “impagável!” Era o meu prêmio quando eu
conseguia impressioná-la favoravelmente com meus escritos.
Enquanto
isso, vai ficando cada vez mais escuro. Perdi meus óculos e não vejo nada.
Aproximam-se sombras e então todos os
meus mortos, inapeláveis defuntos, cada um mais feio e deteriorado que o outro.
E que fedor terrível! Consigo ditingüir alguns, nessa penumbra atroz. Sei quem
são e admiro-me de vê-los tão amigos uns dos outros. apesar de em vida não terem
se conhecido, morei em tantos lugares! irmãos da minha mãe e do meu pai, vinte
e dois espectros, haviam se agregado ao grupo. Era uma algaravia, entretanto
pareciam compreenderem-se uns aos outros e estavam achando tudo muitíssimo
agradável. Troço muito esquisito. Resolvi dar um mugido alto, quem sabe também
uma forte mijada na areia segurando o pau e escrevendo meu nome completo. Cadê
esse dito um, onde foi que se meteu, cutuco o pijama e pego um caninho cheio de
vermelho amarelado ou pus avermelhado, o trem solta, e o cheiro é pior ainda,
vem aquela disgramada me dá uma bronca, como é que vou revidar, todo ligado,
penso em cuspir, sai uma baba boba, ela apesar da catadura limpa
cuidadosamente. Afinal é uma boa moça, vai ver o cachaceiro em casa enche ela
de porrada e os filhos, o maiorzinho disse que vai revidar ai meu Deus é cada
dia mais problema e sofrimento, valei-me Pastor Zinho!
MIRABILE
VISU!
Nada faz o menor
sentido. O tempo. O tempo cessa, os minutos e as horas tombam inertes,
completamente impotentes numa lassidão final. Os segundos deixam de correr e de
serem contados um a um. O universo inteiro congela em um infinitamente pequeno e imperceptível ponto. Mas logo um pequenino feixe de luz escapa, expande-se pelo vazio e as engrenagens todas movem-se outra vez, da mesma maneira de sempre. Os mortos vão-se reintegrando lentamente à natureza, carnes, ossos, cabelos e dentes logo sais minerais e algum pouco metal, a compostagem processa-se, a memória esvai-se nos que ficaram, cada vez menos lembrado, se confundem as histórias, personagens se alteram e trocam de lugar uns com os outros e logo o sentido se perde.
As ubaranas saltaram rumo ao céu naquela
faiscante tarde de verão e se imobilizaram no azul, formando ideogramas. Os
pingos de água refletiram o sol e um arco da velha ao fundo completou o
quadro.
Brasília 2001-2013, julho,14.
Querido Paulo, andei meio atribulada e demorei a voltar aqui, mas valeu muito esperar o melhor momento para apreciar esse conto!
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