SAUDADES DO RIO



Ir para casa ao entardecer. A residência ficava na Rua das Belas Noites, uma quase imperceptível ladeira entre a rua dos Barbonos e o Passeio Público. Neste as árvores, já de bom porte, disfarçavam a lagoa aterrada dos tempos do Vice-Rei Luís de Vasconcelos, que para tal fim mandou arrasar o morro das Mangueiras. Que ficava bem ali, onde hoje é o Largo da Lapa. Foi também o Vice-Rei o responsável pela abertura da nossa rua, a qual o povo já está apelidando "das Marrecas", por causa do chafariz de Mestre Valentim, bem lá em cima, junto com os Barbonos.

Vizinha, a escola de música do Padre José Maurício, onde antigamente os jovens irmãos, o Príncipe e a Princesa tomavam aulas. Embora as infindáveis escalas praticadas no pianoforte ou no cravo amolassem um pouco pela repetição maçante, tínhamos paciência; a compensação vinha quando o próprio padre nos brindava com uma que outra de suas magníficas peças: Estudos, Oratórios Salve-Regina, Laudemus, etc. De onde igualmente fluía música, maravilhosa música, era de logo abaixo, na esquina da Rua do Passeio. Do Palácio do Conde da Barca (em cujo jardim existia um horto de essências indígenas e plantas curativas), dos estudos do maestro Neukomm, que coletava fascinado as modinhas de Joaquim Manoel da Câmara.

Após o jantar, se era dia propício e sobretudo fosse o mês de maio, as cadeiras eram postas na calçada e extasiados assistíamos o nascer da lua cheia, bem por cima da praça. Então compreendíamos o porquê de se chamar assim a nossa rua. Mesmo que seu nome virasse daí em diante um segredo somente partilhado pelos moradores, definia o privilégio que era morar ali. E aí conversávamos uns com os outros. Alguns vizinhos passavam, cumprimentavam e freqüentemente paravam para dois dedos de prosa amena. Oito, oito e meia da noite todos para cama que após esse horário só os desocupados, vadios e malandros circulavam. Com a polícia no encalço, que a cidade era tranqüila e assim a queriam seus moradores e governantes.

Amanhecia e íamos á procura do peixe, ali perto. Assistíamos entre preocupados e admirados (fazia mal, a água do mar!) alguns poucos banhistas que se aventuravam entre as cordiais ondinhas, na Praia das Areias de Espanha, logo depois do Boqueirão. Antes, é claro, já ouvíramos missa (ainda no escuro da antemanhã), ou na Lapa, ou mais longe um pouco, em Santa Luzia, bem na beira-mar. Para essa última era necessário caminhar, mas íamos distraídos com as ondas que morriam suaves nas areias da rua do Passeio, pois que era mesmo disso que se tratava: passear, gozar calmamente a vida nos ares da manhã mal rompida...



Brasília, maio de 2005.

Paulo da Mata-Machado Jr.







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