DUELA A QUIEN DUELA!

 
para os filhos e netos
 
QUANDO CHOVE é que faz bom tempo! Eu sei, eu sei. É preciso alguns equipamentos chatos como guarda-chuvas, mais atenção no trânsito quando dirigir, não vá o motorista a seu lado derrapar por conta dos pneus carecas, ih, esqueci de trocar o limpador de para-brisa!
Por aí vai a lista dos cuidados especiais, dia a dia maior: cada vez mais automóveis... E que chatice ter o sapato encharcado, os pés úmidos, o ar, a grama, o barro, os passeios mal conservados, o asfalto se dissolvendo com poucos dias de uso, ah! Esse período de chuva que não termina!
- Sem falar nessas catástrofes todas, causadas pelo excesso das águas e a intensidade dos apavorantes temporais de verão!
- Quanto a isso, a chuva não tem a menor culpa.
- Hein? Como é que é? Você por acaso já se esqueceu das recentes tragédias causadas por elas? Aquele “réveillon” na Ilha Grande, a enxurrada que matou tantos nas Alagoas, em Niterói, Angra dos Reis, na cidade de São Paulo, no interior do estado, e a maior dessas tragédias, a da Região Serrana do Rio, Nova Friburgo, Teresópolis...
- Pois é. Mas reparou na pontualidade dessas horríveis tragédias que você mencionou? Repetem-se sempre nessa mesma época; se não fosse a terrível perda de vidas humanas, a reincidência até poderia ser considerada monótona!
- Mas e daí? Como dizer que a chuva é “bom tempo”? Vá chover onde precisa, nas lavouras, nas roças, no Nordeste ressequido. Um pouquinho aqui na cidade tudo bem, o ar fica mais respirável, as árvores públicas ficam bonitas molhadas...
- 1966.
- O que?
- Há quarenta e sete anos. Foi em fevereiro? Talvez janeiro. Pouquíssimos hão de lembrar, nesse país de memória inexistente, mas na Rua Santo Amaro, ali no Catete, antigo bairro carioca, um deslizamento de barro e pedras “causado pelas intensas chuvas” matou num instante duzentos e tantos moradores de um bloco de apartamentos. Consternação geral, o Governo ia tomar enérgicas providências, o Cardeal rezou, nos terreiros houve cultos, assim como nos templos evangélicos. A vida seguiu.
Ano seguinte, dia 19 de fevereiro de 1967. Domingo a noite, muita chuva nos últimos dias. Todo mundo em casa, vendo TV, outros já dormindo. Então parte do morro Novo Mundo, na encosta fronteira ao chamado “Jardim Laranjeiras”, na rua General Glicério deslizou. Enquanto progredia na sua cada vez mais rápida trajetória até a rua, a lama e detritos de toda espécie transformaram em entulho uma casa e dois grandes prédios de apartamentos, cheio de moradores. Eu estava lá. Em choque, via pela janela da sala a lama escorrendo bem do lado onde havia um dos edifícios. Um sufocante cheiro de gás. Alguns braços e mãos que gradualmente paravam de se moverem.
Pouco depois enxerguei bombeiros que, sem qualquer treino para aquele tipo de evento, movimentavam-se feito baratas tontas, de um lado para outro. Pareciam ainda mais aturdidos do que nós, as vítimas. Ressentiam-se da falta de tudo, não possuíam qualquer equipamento que pudessem usar, nada vezes nada. Tentamos sair, a escada do pequeno bloco de 4 andares e igual número de apartamentos ficava do lado da tragédia. Conseguimos chegar ao primeiro andar, ainda bem que naquela época de férias, estava sem moradores. A lama misturada a entulhos, galhos, pequenas árvores, pedras, havia lacrado totalmente a salvação.
A custo conseguimos entrar no apartamento, arrombando a porta de serviço. Chegamos na janela, um soldado-bombeiro nos viu. Logo depois um graduado de acercou e disse que estavam dando prioridade aos feridos e que daí a instantes seríamos resgatados. Começo de madrugada e finalmente conseguiram um escada tosca, dessas de obras, que foi colocada em uma plataforma improvisada com tábuas em cima do barro. Não chegava até o parapeito da janela, mas perto o suficiente para que saíssemos amparados. Um pouco antes havia subido por ela um bombeiro. Maravilhou-se ao ver minha lanterna e a pediu emprestada para poder examinar as condições da parte de trás, onde eram os quartos. Voltou e disse que estavam inteiramente tomados pela lama, a única possibilidade de saírmos era mesmo pela “escada” Éramos onze pessoas, os mais velhos desceram com alguma dificuldade, primeiro foram resgatadas mulheres e crianças. Devo ter saído por último, não sei e meu grau de atordoamento e choque era tamanho que isso não me causou a menor impressão. O bombeiro saiu com a minha lanterna. As pilhas ainda eram novas, espero que tenha sido uma importante ferramenta nas mãos daquele esforçado profissional. Talvez, quem sabe? Ele possa ter salvo alguém com ela.
Dia seguinte a imprensa toda ressaltava e dava todo o destaque ao  “drama da moça Berenice” (nome fictício, história real), encontrada viva “por milagre” em uma fresta entre duas imensas lajes, mas que infelizmente a prendiam da cintura para baixo. Durante horas ela foi filmada e fotografada impiedosamente pela salivosa imprensa.
 Essa falta de profissionalismo e cuidado refletia-se nas matérias veiculadas, quer nos jornais, nas revistas, nas diversas rádios e estações de TV. O foco era inteiramente nos dramas pessoais, nenhuma investigação séria como era do dever da imprensa foi feita. As fotos claramente visavam ombrear-se com aquela velhacaria, os aspectos sensacionalistas, dignos de prêmios e louvores, passavam longe de qualquer objetividade, por menor que fosse. Um dos jornais chegou a infâmia de sem qualquer cuidado maior publicar na primeira página que uma enorme pedra havia se soltado do morro e produzido todo aquele horror. Havia até um desenho esquemático mostrando a pedra lá em cima dependurada, os imóveis atingidos, etc.
A verdade? Mais ou menos trinta anos antes, uma fábrica de tecidos que ocupava todo o imenso terreno, fechou as portas. Não sei o motivo. Então o terreno deve ter passado as mãos da União, que ali construiu diversos edifícios destinados aos militares, em uma ampla alameda de mais ou menos duzentos metros de largura. Um paisagismo cuidadoso, árvores, gramados, etc. Virou o “Jardim Laranjeiras”. O que quase ninguém sabia era que, durante o período de construção dos blocos, haviam descoberto logo ali, na crista do malfadado morro, uma grande jazida de areia saibrosa, muito utilizada nas obras. Tal jazida foi então totalmente utilizada, restando uma imensa cratera coroando a elevação. Se era legal ou clandestina? Cabe à antiga PDF (Prefeitura do Distrito Federal) dizer.
A tal cratera  foi sendo preenchida, ano após ano, com lixo e entulho de obras. Ao longo de décadas esse material foi se acumulando. Até carcaças de automóveis havia, misturadas aos descartes. Essa verdadeira “bomba vegetal” naqueles dois anos seguidos de intensos temporais foi paulatinamente se tornando uma gigantesca esponja, absorvendo incalculável quantidade de água misturada com os detritos. Em 1967 a lateral mais fraca, exatamente a que ficava voltada para o bairro cedeu. Incalculáveis toneladas de lixo, terra, pedra, lama e sabe-se lá o que mais se transformaram em uma avalanche mortal, que arrasava com tudo  sua trajetória descendente. E mais uma vez duzentos e tantos seres humanos perderam a vida naquela trágica noite.
- Puxa, nunca soube disso!
- É que possuímos uma imprensa muito cuidadosa com o povo, coitadinho: panen et circenses, as coisas dolorosas em uma semana são deixadas para lá, um mês ou pouco mais e tudo volta a ser como dantes no quartel de Abrantes...
- Como assim? -
 É tão somente isso: o povinho, coitado, não aguenta essas “fortes emoções” que as sucessivas castas de governantes completamente despreparados - para dizer o mínimo - nos “brindam”: Rio, Teresópolis, Angra dos Reis, Niterói, São Paulo como um todo, a infeliz (e pobre) Zona Leste, Alagoas, etc. etc. e etc. Isso sem falar no que sequer se comenta, como a Baía de Guanabara ter virado um grande esgoto, o rio Tietê idem, todo o litoral brasileiro impróprio para banhos de mar (todas as praias, do Oiapoque ao Chuí recebem esgoto in natura), e assim vai. A publicidade desses fatos seria desaconselhável pois não estamos preparados para outra realidade que não seja o “Deus é Brasileiro” “Bonito por Natureza” e outras camuflagens da nossa pavorosa condição de vida, diretamente provocada pela total inépcia e permanente ganância e desonestidade dos homens públicos. Isso começou em 1500 e...
- Mas não há solução? Se fuzilarmos eles...
- Quem são? Quem são eles, que somos nós? Por acaso isso é um jogo pueril, dois times disputando jogo de gude, bandeira, uma brincadeira de criança? Na realidade essas são coisas que acontecem com alguns povos mais despreparados ou menos afortunados, sei lá. Vem ocorrendo ao longo de todo o percurso do ser humano no planeta: vem-me à lembrança aqueles impérios da antiguidade, cada um mais intolerante, despótico, violento e desonesto que o outro? Não parecemos viver essa mesma triste realidade?
Posso parecer pessimista, mas minha é a firme crença que isso tudo não é passível de correção: somente o tempo, ano após ano, geração após geração é que podemos ir aos poucos melhorando: introduzirmos no âmago de cada um a firme noção de nossa cidadania: “nós, o povo”: esta última definição deverá valer para o mais miserável e o maior milionário da mesma maneira: talvez um dia, quando todos nos sentirmos dessa forma, alguma coisa poderá ter início: até lá vamos conviver com muito mais tragédias odiosas e revoltantes. Quando aceitarmos que o barco é um só, o time é o mesmo, o Presidente disso ou daquilo, o Prefeito, o Governador, o Vereador somos nós, uma nação começará a surgir
- Já somos uma nação...
- Não. Ainda não somos.
 
Brasília, março de 2013

Comentários

  1. Engraçado, da primeira vez que li não vi espaço para deixar comentários.

    Rua Cristóvão Barcelos.

    É... talvez um dia...

    Isso me lembrou o início da Constituição americana: "We, the People"

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    Respostas
    1. era essa a finalidade: os americanos sempre se sentiram como uma nação, ou seja, o povo procurou (através dos líderes por eles eleitos) se organizar dessa forma e, apesar dos pesares (guerra de secessão, etc.), mantê-la. Aqui a organização jamais passou de feitoria. É inexplicável para mim que não tenham vingado os diversos movimentos separatistas, lembro por exemplo a chamada "Confederação do Equador" e diversos outros. Mas isso não dá um pequeno artigo e sim um livro que algum historiador possa escrever.

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