D I A D O S N A M O R A D O S

      Santo Antônio: amanhã será seu dia. Em Brasília todos vamos ao local onde fica sua igreja, apanhar o pãozinho bento. Tradição que veio junto com os portugueses há muitos séculos, trazida de uma história na qual o jovem franciscano Antonio, comovido com a pobreza faminta dos homens, deu-lhes a comer os pães que havia no convento. Mais tarde, a aflição do encarregado de servir a refeição dos frades foi enorme, ao notar que nem um só pão havia, na cesta antes abarrotada. Correu então a contar o terrível fenômeno a Antonio, tido já por seus irmãos como santo. Este respondeu-lhe que voltasse e olhasse melhor. O frade padeiro assim o fez e estupefato, deparou-se com cestos e mais cestos abarrotados! Tantos eram os pães que todos ali puderam fartar-se e com a sobra, alimentarem homens e animais das vizinhanças. 

      Hoje, véspera de Santo Antonio, é consagrado na tradição popular católica como "Dia dos Namorados" Acho que foi nesse espírito que, motivado por uma curiosíssima nota publicada em um jornal do DF, que há muitos anos escrevi a crônica abaixo, ora dedicada a todos nós, eternos enamorados e a nossas eternas e queridas musas.

"FAIXA PARA ATRAIR UM NAMORADO SÉRIO
      um dia, ela contou para duas amigas que queria conhecer um 'homem sérios, especial, estabilizado profissional e financeiramente' . Haqvia se cansado de homens vazios, sem inteligência e cultura. As duas amigas levaram o pedido ao pé da letra. Literalmente. Ontem, dia do aniversário de 27 anos, a psicopedagoga Tatiana (sobrenome não revelado), moradora da Asa Norte, estatura mediana, loira, olhos castanhos, recém-separada, um filho de oito meses, foi presenteada pelas amigas com uma faixa inusitada, colocada entre o Tribunal de Justiça e o Ministério Publico. Na faixa, com o número do celular dela, o pedido: 'Procura-se um namorado que trabalhe no TJ ou MPDFT. Sou batalhadora, romântica e bonita."   (in "Correio Braziliense" de Quarta-feira, 21 de julho de 2004 - pág. 26)


      Acordou mais cedo que o costume. Ouvira o bebê chorar? Apurou o ouvido na direção do berço ao lado da sua cama; só distinguiu o ressonar baixo de quem dormia tranquilo e satisfeito. O que havia sido então?
      Fez funcionar a cafeteira elétrica, pegou a xícara que sempre usou, branca e não decorada, a não ser um pequeno "HB" de "happy birthday" gravado em preto fosco na lateral. Aí lembrou-se da data: seu aniversário de 27 anos. 
      Pensativa dirigiu-se ao banheiro. Pegou a escova e ao pentear-se, dois ou três fios mais claros que os habituais castanho-escuros destacaram-se logo: "belo presente!" pensou. "Descobrir cabelos brancos logo hoje!
      Olhou de novo o berço, onde Tiago continuava seu sono, indiferente ao mundo e seus percalços. Queria descer até a portaria do bloco para pegar o jornal, mas ficou com medo de o telefone soar justamente na sua ausência e assustá-lo. Se tirasse o som da campainha iria assustar era quem quer que ligasse e não fosse atendido, pensou. Em seguida se acusou de sempre colocar dilemas para si própria, mesmo em coisas as mais triviais. Seu ex-marido sempre lhe dissera isso, no meio de outras acusações ainda piores. Dava uma discussão sem fim, mas reconhecia, no íntimo, que nesse ponto ele tinha razão. Eduardo, as constantes crises que pareciam infindáveis... mas o fim quase total e imediato delas, quando finalmente concordaram que não dava mais para a vida em comum. Quase voltaram a namorar, ele tão atencioso... ela tão cuidadosa... Mas havia acabado e pronto. Era isso. Tocar para frente.
      Lembrou-se que o aparelho era desses sem fio, modelo que, segundo a propaganda do vendedor da "Feira do Paraguai" tinha um alcance de duzentos metros: 900 e não sei o quê de potência. Vestiu uma calça comprida, colocou um blusão por cima do paletó do pijama e o telefone no bolso.
      Estava dentro do elevador, já de volta para o 4º andar, quando o aparelho soou baixinho, dentro do bolso da calça. "Alô! Quem?" Não conseguira ouvir direito. Voz parecida com a do Álvaro, seu irmão. Deve ter querido dar-lhe os parabéns, o telefone instável logo interrompeu a ligação. Os tais... megahertz, lembrou-se subitamente do nome que o vendedor dissera: conversa fiada.
      De volta ao apartamento, ficou esperando nova chamada. Ou que Tiago acordasse para que pudesse sair com ele. Nesses primeiros dias de retorno ao trabalho, todos eram muito pacientes com os seus constantes atrasos, que entretanto a aborreciam. De qualquer maneira, gostava de sair cedo com o filho, na direção da creche. Ficava na Quadra 608 da L2 Norte, e justificava a fama de ser a melhor de Brasília. Foi uma revelação perceber que podia contar com um local tão bem estruturado e administrado, onde seu filho ficava tanto tempo e onde cuidavam dele tão bem. Não era muito perto do trabalho, mas seu pai, crítico do difícil percurso Leste-Oeste no trânsito da cidade, sempre descobria atalhos que ajudavam-no a conduzi-la e ao irmão para o colégio. E agora ela agradecia mentalmente a ele, que um dia lhe mostrara como ir daquele lugar, junto do Campus da UNB, até o Eixo Monumental, onde ficavam o conjunto dos prédios da administração do Distrito Federal.
      Quando o telefone tocou novamente, ficou surpresa ao escutar a voz de Marisa, e não a do irmão. Ao mesmo tempo. alegrou-se com as brincadeiras da amiga predileta. Mas não entendeu o que ela dizia: faixa? Que faixa? Ah, era uma surpresa dela e de Lúcia, outra grande amiga que viajara naqueles dias. Então, quando fosse para a Procuradoria do DF, desse uma volta na Praça do Buriti no lugar de entrar à direita e seguir para o trabalho. À esquerda no Memorial JK, à esquerda novamente no Eixão e olhasse para o estacionamento do Tribunal de Justiça do DF e Territórios. Combinado! Marisa sempre fora uma querida e confiável amiga, desde muito novas.
      Mas seus sentimentos em relação a aquela sofreram brusca alteração quando, seguindo as instruções, deu de cara com a "surpresa": o quê! Colocar uma faixa escandalosa daquelas bem na frente da avenida, entre o Tribunal e o prédio da Promotoria, com seu nº de celular e sua descrição física, oferecendo-se como... sei lá, uma carente idiota e disponível! Sentia-se nua dentro do carro enquanto cumpria o resto do trajeto para o trabalho. Todos os demais motoristas pareciam olhá-la maliciosamente, mal contendo um sorriso debochado nas faces. Dos ônibus a apontavam e riam alto, um completo horror: Marisa me paga!
      Chegou fula da vida na Procuradoria. Só não contava com o bolo "brownie" com a velinha, os colegas cantando à sua volta, o guaraná com gelo (ela adorava guaraná "diet") Marisa percebendo seu amuo mas a distraindo incessantemente com piadas e brincadeiras nas quais logo emendou uma explicação para a festa logo no início do expediente. Havia exposto sua tese ao Dr. Corrêa com tanta habilidade que este concordara: festa à tarde fazia com que quase todos comemorassem rapidamente e aproveitassem para sair mais cedo...
      - Mas a faixa, Marisa! O que vão pensar? Parece coisa de mulher de programa! Só faltou escrever que faço massagem erótica ou algo assim!
      Aos poucos foi finalmente percebendo o humor da amiga e concordando que era até divertido. Podiam contar quantos telefonemas ela receberia, quais os trotes, quais os doentios, quais os verdadeiros... e logo as chamadas vieram, a maioria, a sério para sua surpresa. Davam nome, profissão estado civil, conversavam, jogavam um verde aqui e ali...
      Até que uma voz bem modulada, algo grave, quente, parecendo sincera, logrou atrair sua atenção. Augusto Mário de Azevedo Reis, identificou-se com o nome completo e declarou que era Promotor de Justiça. Envolvente e educado, sabendo manter uma polida distância de quem ainda não conhecia pessoalmente. Uma pequena chama, um prenúncio de algo, quem sabe?  E finalmente, um convite para o fim de semana, um teatro... pediu ao Dr. Augusto Mário que ligasse novamente na sexta-feira à tarde. Quem sabe?
      Ninguém sabe. Essas coisas que acontecem sem que ninguém as perceba direito, simplesmente acontecem: de volta à creche para apanhar Tiago e viu André, pai de Júlia. Sorriram um para o outro enquanto esperavam as crianças, como vai, pois é, seu bebê é lindo, sua filhinha também. No outro dia, quase levou Tiago mesmo dormindo para lá. Não sossegou enquanto não viu Júlia e o pai. Deixaram as crianças, conversaram um pouco, ah, coincidência, vamos para perto um do outro! Pararam no caminho para um café, André contou-lhe da recente e inesperada viuvez, solidarizava-se com a dor do rapaz enquanto o coração acelerava novamente para aquele antigo e gostoso ritmo conhecido. Liga pro meu celular, claro! pegue o meu também, a gente combina alguma coisa, tá certo, ótimo! Daí a oito meses casavam-se. Ah, o Dr. Augusto Mário de Azevedo Reis?  Atualmente faz doutorado em Salamanca, no País Basco.
         


 

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